top of page
Untitled (2 x 3.5 in) (8).png
Alho, areia, hortelã

Juliana Otoni

alho-areia-e-hortela-col-6.webp

Toda vez que quero escrever eu dobro roupas. Vou partindo ao meio as calças,
escondendo as mangas das camisas em um envelope perfeito, tornando cada par de meia
uma bola macia: deito uma sobre a outra, depois vou enrolando pela ponta até chegar ao
cano, então puxo uma das aberturas até envolver todo o par.

Dobrar roupas é um jeito de não me arriscar. A sensação é de dever cumprido,
mas as consequências ficam apenas dentro de casa. Também costumo usar a pinça para
fugir da escrita. Tento puxar com precisão cada pelo. Do rosto, da coxa. Na parte esquerda
do queixo nascem quatro pelos semanais. Eles são grossos, apontam ali sempre no mesmo
lugar e, se eu tiver sorte, a necessidade de escrever coincide com a primeira fase do pelo,
aquela na qual a ponta é quase impossível de puxar. Por longos minutos permaneço ali,
na lida de conseguir puxar a ponta do pelo com a pinça.

Contar as pintas do rosto é outra distração que mantém as mãos suficientementelonge do papel. A cada ano aparecem pintas novas e as velhas costumam mudar de cor.Um ponto preto de repente ganha como acompanhante um pequeno cisco marrom.

Quando eu era adolescente, fazia limpeza de pele com a esteticista do bairro. Ela
atendia em casa numa cadeira velha de dentista e tinha uma ficha de cartolina para cada
cliente. No cartão havia o desenho de um rosto genérico onde ela marcava as pintas e
manchas. Era a primeira coisa que ela fazia quando eu chegava: olhava meu rosto por
cima dos óculos de lentes bifocais, abaixava os olhos e via o papel pelas lentes, conferia
as marcas e, como se colocasse os pingos nos is, ia fazendo pequenos pontos no cartão
com uma caneta Bic que tirava do coque.

O que eu mais me lembro é do cheiro das mãos. As pontas dos dedos dela
cheiravam a alho. Toda vez, depois de registrar o rosto no cartão, ela ligava um aparelho
que fazia aquela fumaça úmida e pedia para que eu me abaixasse até perto da água que
boiava no plástico transparente. O tempo que durava aquele vapor parecia longo. Só após
muito tempo ela levantava o encosto da cadeira e ia colocando pequenos círculos de
algodão no meu rosto. Logo vinha a hora de esfoliar. Era quando eu sentia o cheiro dos
dedos.

Os pedaços de algodão eram retirados delicadamente e um creme que parecia feito
de areia e hortelã era espalhado em movimentos circulares pela minha pele. Alho, areia,
hortelã.

O cheiro me confundia. E todas as vezes que voltava lá eu procurava por ele.
Quando comecei a escrever, pensava muito nessas mãos. Se uma mulher escreve e
cozinha, suas mãos terão um cheiro. Se opera máquinas pesadas e escreve, outro cheiro.
Se desmata e escreve, talvez o mesmo cheiro das mãos da mulher que planta e escreve.
Mas aquela que só escreve não tem cheiro algum nas mãos.

No fim do ano passado ganhei uma bolsa de presente da minha filha. No fundo da
bolsa, um compartimento térmico que podia ser aberto de fora a fora por um zíper. Ela
disse que escolheu a bolsa no shopping, levada pelo pai. Decidiu por aquele presente
porque já tinha visto minha marmita entornar muitas vezes. É ali, no compartimento
térmico da bolsa, que guardo meu caderno. Ele passa muito tempo lá dentro. Mais até que
as marmitas.

Na noite passada, sonhei com um céu bem escuro e uma constelação em formato
de um corpo cortado pela metade. Eram pequenas estrelas que brilhavam formando a
imagem do pescoço e das costas até chegar na cintura. Eu olhava o céu e via aquilo no
meio. Sentia o estranho que havia no corpo-constelação e admirava enquanto podia. Sabia
que logo ia desaparecer e que só eu podia ver.

Acordei pensando naquele meio corpo. De quem seria? A forma era parecida com
a estátua da Vênus de Milo, vista de costas. Ou com a lembrança que eu tinha dela de
costas, que às vezes podia estar misturada à da Vênus com Gavetas, do Dalí, que vi uma
vez em Belo Horizonte, na primeira vez em que fui a um museu, ainda menina. A Vênus
do Dalí parecia uma mulher com muitos segredos, mas todas as gavetas estavam meio
abertas.

Dei um Google nas costas da Vênus de Milo. Era o mesmo pedaço de corpo do
sonho. Embaixo da foto, o jornalista de uma revista de variedades perguntava onde
estavam os braços da estátua. Mais do que saber dos braços, a pergunta era: o que eles
seguravam?

Os pesquisadores ouvidos pela revista davam suas respostas: a Vênus podia estar
segurando uma maçã – uma alusão ao julgamento de Paris – uma coroa, um escudo ou um espelho com o qual admirava o seu reflexo. Um anatomista digital reproduziu a
posição original dos braços e adivinhou que a estátua segurava um fuso. Sim, ao que tudo
indica, a deusa tinha nas mãos um instrumento de fiar. A minha versão preferida é a de
que ela segurava uma maçã na altura dos olhos.

Que cheiro teriam as mãos da Vênus? Pensei no que o sonho queria dizer ao me
mostrar um corpo sem braços. Um corpo sem mãos, sem cabeça e sem pernas que eu
olhava com admiração. Um corpo que não pode fugir.

Ler é um jeito mais digno de fugir da escrita. Lendo, descanso do peso que é não
conseguir escrever, me acalmo sabendo que existe muito a ser lido, mesmo que sentir o
ímpeto da escrita nada tenha a ver com ocupar as prateleiras da cidade com mais um livro.

Existem as pessoas que vão atrás das coisas boas e as que preferem evitar as coisas
ruins. Cada tipo de pessoa vive de modo a alcançar o que prefere. Sou uma pessoa do tipo
dois, que evita. Escrever me tira um incômodo e me arranja outro. Então, quando consigo
botar algo no papel, me livro do mal-estar inicial e, com ele, vai embora também a náusea
colateral de sentir a escrita como a única coisa que pode resolver aquilo tudo. Parece
complicado. E é. Mas é complicado de explicar, de sentir é muito simples.

Durante todos esses anos, o cheiro das mãos da esteticista deve ter passado um
pouco para o papel cartão. Imagino uma pasta de plástico, daquelas de arquivo, com todas
as fichas de todos os rostos nos quais ela fez pequenos pontos das marcas do tempo. O
cheiro guardado dentro da caixa e embaixo da estante, sufocado e importante. Esquecido,
mas ali, na altura da linha dos pés que ainda fazem subir e descer a cadeira de dentista.

Hoje em dia as adolescentes fazem skincare olhando um vídeo no Youtube. Os
produtos têm cheiro de pudim e até de unicórnio brilhante. Não sei que cheiro tem uma
coisa que brilha sem existir. Imagino as mãos obsoletas da esteticista ou as peles velhas
que ela alisa. As peles das pessoas que gostam de sentir coisas boas.

Depois de um sono sem sonhos, acordo agitada e olho minhas mãos. Passo pela
sala e vejo a pilha de roupas dobradas, a mesa posta. A luz branca do espelho do banheiro
me mostra um rosto sem pelos, todos foram retirados ontem. Está frio demais para
descobrir as coxas. Abro a gaveta e pego o caderno. Escrever é desenrolar o nó da
garganta. Segurar a caneta é como erguer o fuso, puxar o fio. Pego a caneta e levo uma das mãos até o nariz. Não sinto nada. Talvez minhas mãos tenham um cheiro que só outro
rosto pode sentir.

Número 2

Volver al Índice

Leer más
capa-editorial-2-crop.webp

Gustavo Reyes

Soy

Leer más
viviendo-col-9.webp
Sarabatana Revista Independiente de Literatura
  • Instagram

REVISTA INDEPENDIENTE DE LITERATURA

bottom of page