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Capital do mundo

Fernanda Donega

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Nova Iorque me atravessou. Atravessei a pé a ponte do Brooklyn, de lá para Manhattan, a  capital do mundo à minha frente, a ponte de aço e madeira, marrom, toda ela. Seus cabos,  cortando o céu em diagonal, erguem o chão de madeira dos pedestres e ciclistas acima da via  para os carros. Vai-e-vem desde 1883. A sustentação do miraculoso cartão postal ao fundo,  ostentando de azul, verde, cinza, prateado luminosos o horizonte da felicidade infinita, do  contínuo fluxo de tudo e todos. Seus braços de ferro do Brooklyn. 



Nova Iorque é a imagem do sucesso, ou melhor, o sucesso da imagem, a projeção mundial  que a todos convenceu. É um planeta, é um universo-ilha espetacular cercado de aplausos por  todos os lados. Um trator-maçã de apenas mil duzentos e poucos quilômetros quadrados. O  Central Park é um lindo retângulo verde cavado no meio da ilha de norte a sul. 



Bela descrição, pensei, que essa experiência me proporcionava. Olhei para os meus pés, eles  ainda estavam no chão, achei que voava por um instante. Mas o que eu vim fazer aqui foi  acertar umas contas. Fui enganado. E, pra completar, não tinha nenhum King Kong no topo  do Empire State. Mas nisso eu já não estava acreditando muito mesmo. Vim aqui pra falar  com o presidente e acertar as contas do resto. 



Naquele dia à tarde, eu tinha passado lá na Casa Branca, mas ele não pôde me atender.  Disseram-me para ligar antes, mas eu sempre prefiro ir pessoalmente. Eu não gosto dessa  coisa de falar ao telefone, ligar antes pra marcar. Toda vez que tenho que fazer isso, tenho a  impressão de que liguei no lugar errado, parece que a pessoa do outro lado não está falando a  mesma língua. É como ligar no médico para marcar uma consulta e ter a impressão de que  liguei no açougue. Deixa pra lá a comparação. 



Então, decidi retornar no outro dia. Achei que não precisaria acampar na porta. Muita gente  faz isso, mas eu não sei bem o porquê. Você é fã, você vai lá e acampa na porta do show da  sua banda preferida três dias antes do evento. Aí os seguranças abrem os portões, você entra,  sai correndo arrastando a barraca, porque não deu tempo de fechar. Esmaga-se contra o  tablado que está a cinquenta metros do palco, cola o rosto no segurança baforando ódio na  sua cara, o show começa, você nem respira e nem consegue cantar os hits. E ainda não  conseguiu fechar a barraca.



É mais ou menos assim também na Casa Branca. Me disseram. Por isso, preferi ir numa hora  mais tranquila, depois do almoço, quando todos parecem meio sonolentos. Mas eu estava ali de férias. Então visitaria alguns lugares só pra passar o tempo. Não tinha lá  muito tempo também. Logo teria de voltar para o meu país, para o meu emprego, minha  cachorra e meu gato que ficaram com a vizinha. Comprei um carrinho desses de feira ontem e  meti dentro as coisas pra devolver ao presidente. Andaria um pouco no parque, depois falaria  com ele. Nesse meio tempo, quase perdi o trem. 



Chegando à Casa Branca, já tinha uma fila enorme de pessoas, sozinhas com seus carrinhos.  Alguns iguais ao meu, outros floridos. Todos cheios das coisas para serem devolvidas ao  presidente, imagino. A pessoa na minha frente tinha a senha número cinquenta, então me  dirigi ao início da fila para pegar a minha. A moça da senha estava vestida de aeromoça. Por  um momento, achei que a Casa Branca tinha asas. Sei lá por quê. Mais parece um elefante.  Ela, então, me disse que a última senha do dia já tinha sido entregue. Lamentamos juntos a  minha pouca sorte, mas saí satisfeito, pois vi que outras pessoas, como eu, desejavam falar  com o presidente. 



Tomei o trem de volta a Manhattan. Resolvi ficar o resto do dia no Central Park, já que não  tinha um plano B. Fazia um dia bonito. Uma brisa balançava meus cabelos, agora um pouco  mais compridos que o habitual. Afinal, eu estava de férias, não queria me preocupar com isso.  Sentei em um banco, num lugar confortável, de frente pro lago. O sol, apesar de fraco,  aquecia o suficiente para não querer sair dali pelas próximas horas. Alguns pombos vinham  de tempos em tempos. 



Uma mulher, que aparentava ter a mesma idade que eu, se aproximou e se sentou na outra  ponta do banco. Ela também carregava o seu carrinho. Então perguntei o que ela levava ali.  Ela me olhou e nada disse. Sorriu com os olhos, sem mexer a boca, um sorriso entalado, que  saiu com dificuldade como se o mínimo movimento da pele do seu rosto pudesse rachá-la em  pedacinhos secos, como uma argila seca quebradiça, e, um a um, fossem se desgrudando e  caindo lentamente. Percebi que ela não queria falar. Não insisti. Mas lhe contei toda a minha  história até me sentar ali no banco e ela aparecer. Ela ouviu tudo com a atenção de uma  criança que ouve uma história fantástica pela primeira vez. Às vezes, balançava a cabeça  sinalizando que acompanhava cada detalhe.



Começava a escurecer, então me despedi. Ela nada disse e olhou novamente para mim.  Peguei o carrinho e comecei a andar, e ela veio vindo atrás de mim, também puxando o seu  carrinho. Parei e perguntei se ela precisava de algo, se queria ajuda, e ela nada disse.  Perguntei se ela estava me seguindo. Nada. Resolvi andar mais alguns quarteirões, talvez o  caminho dela fosse o mesmo que o meu. Ela estava me seguindo. Disse a ela para ir embora.  Aquilo me aborrecia um pouco. Ela nada fez, continuou a me seguir. Parei e gritei para que  ela se assustasse e me deixasse em paz. Ela nem reagiu, apenas fechou um pouco os olhos  como se meu berro provocasse um vendaval empoeirado. 



Em frente ao meu prédio, refleti alguns segundos antes de pegar a chave. Era tarde. O que eu  ia fazer com aquela mulher? Ela me olhava silenciosa, ela me seguia, sem fazer ruído algum.  Só o seu carrinho parecia ranger de uma das rodas, o que não me incomodava muito. Abri a  porta do prédio, e ela entrou logo atrás de mim. Tomamos o elevador em silêncio. Eu também  não queria falar mais nada. Já tinha contado toda a minha vida para ela. Não tínhamos mais  nada a dizer um para o outro. Ela também parecia satisfeita em me confidenciar sua vida com  o seu silêncio. Eu sentia uma gratidão bizarra. 



Entramos sem fazer barulho. A proprietária, que me alugara o quarto quando cheguei, estava  dormindo. Tomamos um copo de leite e fomos para o quarto. Pensei em colocá-la para  dormir no sofá, mas a proprietária levaria um susto, chamaria a polícia, aquela coisa toda,  cinco carros de bombeiro. Achei desnecessário. Disse para minha acompanhante que só tinha  uma cama de solteiro, que ela se arranjasse como pudesse. Colocamos os carrinhos lado a  lado encostados na parede. Me deitei. Ela ficou um instante parada em pé ao lado da cama,  apagou a luz e se deitou ao meu lado. “Amanhã vamos à Casa Branca”, disse, e dormi. 



Na manhã seguinte, a claridade me acordou. Ela já havia se levantado e estava sentada na  cadeira da escrivaninha. Perguntei se ela havia dormido bem, e, com a cabeça, ela disse que  sim. Disse para me esperar ali, pois a proprietária ainda não tinha saído para trabalhar. Na cozinha, enquanto tomava o café, a proprietária me disse que eu tinha que deixar o  apartamento, pois eu já estava ali há trinta e sete dias, já havia passado uma semana do  combinado, e ela não poderia mais me alugar o quarto. Insisti dizendo que logo iria embora,  logo minhas férias acabariam, e ela disse que não entendia, pois minhas férias tinham  acabado havia uma semana. Achei que ela queria se livrar de mim com aquela história de que  minhas férias já tinham acabado, ela não me queria mais ali usando o seu banheiro, nem nada, essa era a verdade. Aceitei sem discutir, afinal eu ainda tinha uns dias de férias, não  deveria me aborrecer por isso. 



Ela saiu para o trabalho, eu fui para o quarto, a mulher estava lá do mesmo jeito que eu a  tinha deixado. Não tinha muito o que carregar comigo, só meu carrinho, e agora essa  desconhecida que podia andar com as próprias pernas. Tomamos café, como se tivéssemos  repetido isso juntos nos últimos quarenta anos. Olhei ao redor, a sala, os quadros na parede,  as fotografias, os livros. Deixei o dinheiro do aluguel em cima da mesa e saímos. 



A mulher andava ao meu lado. Na rua, eu disse que passaríamos no parque antes de ir para a  Casa Branca. No caminho, um cachorro meio faminto começou a segui-la. Sentamos em um  banco em frente ao lago, cada um em uma ponta, carrinhos ao lado. O cão no meio.  Olhávamos os três para o lago. A água parecia um grande espelho mole, ondulando o reflexo  do céu e dos patos que, às vezes, passavam. Estava com uma cor e um brilho diferentes  naquele dia. Mas talvez estivesse como em todos os outros. Eu não saberia dizer. Senti uma  vontade imensa de estar ali dentro daquela paisagem, de ser parte daquilo que eu via e achava  bonito. Era como uma propaganda de filme de um telão gigante da Times Square. Devem ter  botado ali enquanto a gente dormia. Mas era dia, tinha sol, não combinava muito. Acho que  por isso era tão familiar para mim. 



Nada fiz senão permanecer ali imóvel. Uma pedrinha veio rolando pelo caminho de terra que  as pessoas usam para correr. Alguém se exercitava e a chutou sem querer. Neste segundo,  senti uma ausência. A mulher, cujo nome eu desconhecia, não estava mais ao meu lado. Me levantei, num impulso corri até a grade que nos separava do lago, pulei meio desajeitado,  eu não tinha mais a flexibilidade de quando jovem. Ela tinha se atirado no lago e, com muita  força e agitando os braços, socava a água, produzindo ondas e assustando os patos.  Permaneci imóvel, era o que eu imaginava e sentia, ela sumia no meio da água que agitava.  Então, ofegante, se deteve um pouco, recuperando a respiração. Pousou as mãos e os  antebraços na superfície agitada da água como se a quisesse acalmar. Permaneceu alguns  segundos assim e, quando tentou levantar os braços, a água veio junto, grudada nela, como  uma gelatina gigante. Aquilo me assustou, mas ela estava pronta, como se soubesse e  esperasse esse momento. Então olhou para mim. 



Ela nada fez além de expressar um maravilhamento que eu jamais vira em outra mulher.  Começou a andar de costas para tentar sair do lago, e a coisa vinha grudada com ela. Andava e trazia a água grudada, o lago inteiro vinha se arrastando atrás, por todos os lados, as árvores  ao redor. Me ajeitei com o cachorro para não cairmos, vinha tudo junto, o céu estava grudado  também. Uma família de cães se juntou a nós. Ela arrastava a paisagem inteira, deixando um  rastro azulado gelatinoso sobre a terra que ficava à mostra, como a carne viva exposta  debaixo da pele arrancada. 



A mulher caminhava, e nós nos equilibrávamos sobre o que agora era uma espécie de manto  que a cobria a partir dos ombros e se estendia atrás como paisagem. E, depois de muito  caminharem, restava ainda um pedacinho de paisagem, um pequeno lago no fim da cidade,  que ainda não era manto. Dele, um pato se aproximou. E ficou parado, me encarando. Seus  olhos brilhavam.

Edição 3

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