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A Última Noite

João Sassi

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08 de abril

   

Ao contrário do Umberto, ou da maioria dos meus convivas, eu era um adolescente desapegado aos vícios da minha geração. Salvo alguns goles do antigo Biotônico Fontoura, não guardava interesse em qualquer substância de significativo teor alcoólico, estupefaciente ou alucinógeno. Em parte, por conta disso, não me interessava também por ir a shows de rock ou a boates, e tampouco freqüentava botecos ou bares da moda, como o Beirute ou o Arabesque. Aos 18 anos, minha mentalidade primitiva só comportava futebol e mulher como objetivos pelos quais o sangue derramado merecia ser vingado.

Me acostumei a ficar em meu quarto justamente quando deveria, pela impulsividade dos hormônios, estar fora dele, o que criava um conflito interno entre o moleque que tinha que acordar cedo para treinar e o moleque que queria sair para conhecer gente na sexta-feira à noite. Havia, além disso, um pretenso escritor dentro de mim, e era ele quem mediava a contenda, optando, não por sair ou por dormir, mas por permanecer em casa fazendo registros do cotidiano ou de ardentes desejos carnais em meu diário. Nos fins de semana sucumbia à alcova, perdido em lucubrações semi-literárias, e nem a iminente data de apresentação à Polícia do Exército interferia nessa rotina monacal (por tradição, sempre disposto a pecar).

Certa noite, em meio a embates internos como o descrito acima, e após as divagações de praxe registradas no caderno, me senti de tal forma estimulado pela disciplina adquirida – uma sensação de bem-estar causada pelo equilíbrio do espírito advindo das pequenas conquistas – que fui até a janela refrear meus ímpetos e dissipar os maus pensamentos que precipitavam lá no sótão; haveria treino bem cedo, e atrasos não eram tolerados pelo técnico Ferrugem. “A meta é disputar a Copa São Paulo de Juniores no ano que vem!”, nos iludia, sempre que iniciava os trabalhos à beira do gramado.

Passava das 22:00, e o movimento de carros rebaixados e encerados era intenso no estacionamento do posto de gasolina em frente ao prédio onde eu morava – a Asa Sul sempre fora a preferência dos playboys para o pré-night da Capital. Dali, seguiriam para o Centro Comercial Gilberto Salomão, ou para alguma boate, no Lago Sul. Mauricinhos excitados e patricinhas falantes; elas, nos carros, entre confissões e gritinhos de excitação, enquanto eles compravam birita, rindo alto e trocando soquinhos de cumplicidade. Estiquei o olhar até a linha do horizonte amarelada pela borda da lua cheia que se pronunciava. A chuva fina que caíra durante toda a tarde deixara poças d’água pelo asfalto, multiplicando o cintilar das luzes coloridas de neon. A atmosfera estava convidativa e pedia música. Fui ao quarto ao lado, onde ficava a vitrola, e coloquei Tatto You, dos Stones, na agulha. O apê estava à minha mercê; os demais habitantes estavam na putaria – além do meu pai e do Umberto, Federico, o caçula, e Leandro, um primo desgarrado do lar, compunham a alcatéia. Aumentei o volume e aos indefectíveis primeiros acordes de Start Me Up senti meu corpo se sublevar e a alma querer se alvoroçar, embriagada de bem-estar e altivez; “som de responsa!…”. Retornei à janela do quarto e ali fiquei devolvendo ao mundo o prazer que ele me proporcionava, expandindo minha felicidade em meio ao bafejo fresco trazido pela noite.

 

Sobre as árvores, o brilho da lua despontada, aliado à brisa advinda de chuvas distantes, empregava à folhagem das copas ondulações que lhes davam o sereno aspecto do alto-mar em suspensão. As quadras mais antigas de Brasília ostentam grandes oceanos paisagísticos, quando vistas de cima.

 

Uma nova lufada de ar sedutora me acariciou o rosto, trazendo com ela os feromônios de uma noite que parecia no cio, e lá se foi em liberdade meu espírito juvenil. A batida do som aguçava minha sensibilidade, potencializando minha libido; “do it, do it, do it, do it, do iiiiiit”, provocavam as backing vocals, logo no início de Slave. Senti uma agitação incomum; a percussão se desenvolvendo e as guitarras de Keith e Ronnie se complementando na selvageria de um rock’n roll seminal… Difícil acreditar que aquele álbum fora resultado de sobras de estúdio. Foda-se; o resultado foi magistral. Urgia agir; “don’t wanna be your slave!”…

 

A pressão do chuveiro me proporcionou uma ducha fria de alta qualidade, daquelas que te fazem enxugar a rosto e dar de cara consigo mesmo no espelho, com um largo sorriso e dentes à mostra. Meti-me em calças folgadas de moletom azul-marinho, e tirei do armário uma Hering vermelha, de mangas compridas. Daria uma pernada até a “9”, reduto da casta progressista da cidade, faria um escambo de olhares e reverberações, bastando, imaginava, para saciar minhas vontades e carências – ao menos nas aparências. Sentei na beirada do tatame japonês da sala para colocar o tênis; “esse LP é muito do caralho…”, e quando apertei o botão do elevador, cantarolava “she’s my litlle ronck’n roll!”, deixando o bolachão rolando solto no toca-discos.

 

Na loja de conveniência do postinho descolei um litro de iogurte de pêssego. Dei umas boas goladas e me pus a caminhar, senhor de mim. A atmosfera estava realmente convidativa, e o céu de nuvens insinuantes se abria com o clarão da lua. O frescor é bem-vindo quando se tem calor guardado dentro do peito. Os passos eram dados sem pressa, procurando cada graveto, folha seca, brita ou superfície que pudesse produzir um barulhinho gostoso.  O iogurte descia bem, e eu vagava como um poeta vagabundo, sem destino, breu adentro. Buscava o glamour-noir da meia-luz dos postes enquanto verbalizava meus próprios pensamentos.

 

Ao chegar à Náine, deparei com o asfalto e as calçadas tomados por uma massa compactada de gente. A mão-dupla fora transformada em mão-única, por onde passavam, em fila indiana, os carros que ousavam subir ou descer a rua atravessando aquela Ilha das Flores humana formada por cabelo, bright, fumaça, odor de cerveja, vapor de mijo, jaquetas jeans rasgadas e muitos casacos de couro. Um chorume fedorento escorria dos contêineres de lixo em meio a roqueiros, artistas, jornalistas, cientistas sociais e universitários que não pareciam se incomodar minimamente, chegando a apoiar a birita nas estruturas de ferro imundas. Era a vagabundagem que se opunha aos almofadinhas do Gilberto. Àquela época, Brasília oferecia várias opções de lazer noturno – duas –, tendo por epicentro o Gilberto Salomão e o Beirute, de onde as dicotômicas tribos faziam o check-point antes de qualquer festa na UnB ou numa casa de embaixada, necessariamente.

 

Eu não era exatamente afeito àquela balbúrdia lúgubre e fedorenta, ainda que ali se encontrassem muitos conhecidos os quais não deixavam escapar a surpresa pela minha presença, indagando entre sorrisos embriagados e olhos esbugalhados: “Bernardo!? Que massa, você por aqui, véi!!!”, tamanha a fama de atleta que eu cultuava. Para a maioria deles, minha disciplina era o ensejo para um futuro craque da pelota. De mais a mais, eu tinha mesmo uma sólida reputação e não me permitiria mais que um subir e descer de rua a fim de não abalar minha fama de bom. Ia-me com gostinho de ficar, mas ia-me.

Pois foi ao longo da subida do comércio, a alguns passos da esquina que me levaria ao solitário caminho de volta, que a avistei, sentada bem próxima a mim, com seus lindos cabelos armados, traços requintados e sobrancelhas sinuosas; era a beleza cabocla da mãe em perfeita simbiose com a sensualidade negra do pai; era Sabrina, colega de classe no ano anterior, de quem havia meses eu não tinha notícias. Quando nos conhecemos, eu namorava Cristiana e lhe fora fiel (ou quase). Agora, porém, sem namorada e sofrendo platonicamente por Maria Felícia, eu não sentia qualquer amarra, senão potentes impulsos hormonais. Sabrina, por sua vez, estava cabisbaixa; alheia ao caos que imperava ao redor. 

Linda e exageradamente sensual, contava que ela houvesse guardado um pouco dos sentimentos que um dia revelara por mim, há tempos recolhidos. Caminhei em sua direção e então vi que enxugava algumas lágrimas, mas já estava próximo demais para refrear o movimento que levava minha mão ao seu ombro, tocando-o de leve:

– Sabrina?… – Ela continuou a limpar o rosto. Insisti: – Tá tudo bem? O que tá fazendo aí? 

 

– Tô sentada, Bernardo… Não tá vendo? – reagiu, virando momentânea a cabeça, mas reprimindo a surpresa de me ver ali.

 

– Sim, mas… Aí?!

 

– É. É proibido? (senti que a parada ia ser difícil)

 

– Bom, daqui parece meio sujo esse chão…

 

– É, parece – resignou-se, enxugando também a secura da fala para enfim erguer o narizinho arrebitado em minha direção, já com outros ares. Seus olhos cintilantes de choro escondiam candura, apesar da tristeza aparente. Olhando-me com repentina altivez, foi irônica ao devolver a pergunta, enquanto passava a mão sobre uma lágrima refratária:

 

– E você, senhor Bernardo Bossiaki, o que faz por aqui? Mudando de hábitos? Fugiu do quartel? Ha, ha, ha!… – Esta última foi um gancho no queixo. “Ela poderia ter me livrado”, lembrei.

 

– É só daqui a dois meses; ainda tô livre – insinuei, oferecendo a mão para que ela se levantasse. 

 

Trocamos dois beijinhos, e o toque da minha bochecha com a dela, macia e cheirosa, foi tão prazeroso quanto poderia ser, e a abracei. Pude sentir seus dedos comprimindo minhas costas, aproximando levemente seu corpo contra o meu. Ela tinha saudades. O sentimento permanecia.

O ambiente estava carregado, embora mesmo na sarjeta, Sabrina claramente não pertencesse àquela atmosfera. Usava perfume, ornamentos dourados e uma leve maquiagem. Taurina.

– Você tá sozinha? 

 

– Mais ou menos… Tô com umas amigas, ali…

 

– Hum… E se a gente desse uma caminhada para qualquer lugar longe daqui, tipo Guaporé, outro lugar qualquer, longe desse auê; que que cê acha? – arrisquei.

 

– Espera aí; vou avisar pra elas e já volto – devolveu, na lata, para certo espanto meu. O homem com uma caixinha de iogurte de pêssego à mão deixava o baile com a mais bela garota do salão. E a pé.

 

Enquanto caminhávamos, Sabrina não falou, e tampouco provar o iogurte aceitou: “Tomei uns goles de cerveja; não quero mais nada!…”

– disse, com enfado. Eu, que não reunira condições afetivas para corresponder-lhe às expectativas ao longo do ano anterior, agora me esforçava para agradá-la com palavras gentis e gracejos que, no entanto, não lhe arrancavam qualquer sorriso. Passei pelos mesmos lugares da ida, produzindo os mesmos barulhinhos que ela solenemente ignorou, mantendo-se absorta em suas maquinações mentais. Mesmo com sua aparente resistência em se deixar levar pelo meu bom-humor, era difícil acreditar, até em meus mais profundos devaneios, que as conjunções astrais estivessem tão ao nosso favor, sem que eu ou ela devêssemos nada a ninguém, a ponto dela, em instante algum, questionar o tortuoso caminho que fazíamos em meio ao nada, em direção ao além. De repente, duas quadras e meia-hora após o ponto de partida, disse, “tá vendo aquela janela? É do meu quarto”, cuja veracidade da informação ela colocou em xeque: –

A gente pode subir e tirar a prova… – propus.

 

Sabrina me fitou por alguns segundos, desconfiada, mas de súbito acatou, muda, a ousada sugestão, sem nenhum “porém”, nem cara boa ou ruim; apenas rumou para a portaria, passando por mim. As mais fantasiosas projeções feitas ali mesmo, daquela janela, momentos atrás, apequenaram-se diante da grandiosa oportunidade que agora se materializava ao alcance dos meus lábios.

 

No elevador, trocamos olhares silenciosos. Sabrina estava irredutivelmente séria desde que iniciáramos o périplo, e parecia mais decidida que eu a fazer seja lá o que fosse fazer, enquanto eu apenas desejava que nossos planos coincidissem. Na porta de casa, girando a chave no ferrolho, tranquilizei-a protocolarmente, “não se preocupe; estamos sozinhos…”, como se ela já não estivesse tranquila o bastante, certamente mais que eu. Entrando no quarto, um facho de luz azulada incidia sobre o lençol esticado, produzindo uma sensação de luminescência própria sobre o colchão de casal acomodado sobre o carpete. A lua estava majestosa, com seus espectros ocupando todos os meandros da noite. Quando pedi licença, Sabrina se debruçou sobre o parapeito para apreciar o espetáculo. “Vou botar um som”, disse, e saí pensando haver visto um leve sorriso em seu rosto. “Deixe a luz apagada…”, solicitou. No quarto do coroa, substituí os Stones por Miles Davis trompeteando seu inebriante Nature Boy, em Blue Moods. Ao voltar, me senti incomodado por vê-la sentada na beirada do colchão.

 

– Sabrina, francamente, não dá para você sentar aí com essa calça, mulher… Você estava naquele chão sujo da porra e… – antes que eu concluísse a impertinente cagação de regra, numa simplicidade paroquial, livrou-se, com os pés, das sandálias, depois apoiou-se no colchão, de costas, e levantou o quadril, desabotoando e empurrando com as mãos a calça, até os tornozelos: “Ajuda aqui, Bernardo”… Quase não consigo esticar os braços, tão perplexo estava, e quando a alcancei, puxei-a num leve movimento, e extasiado fiquei, certo de que a um menino da minha idade (ou de qualquer idade) não haveria visão mais bonita no mundo. Se uma frente glacial polar planetária congelasse a noite naquele instante, eu já me daria por satisfeito e passaria a eternidade sorrindo…

 

Com a alma quente, ela, que já havia também se livrado da jaquetinha jeans, tirou a singela camiseta branca de algodão que comportava os pequenos seios e se deitou com a barriga para baixo, abraçando o travesseiro no qual repousou uma das maçãs de seu irretocável rosto – tinha a silhueta de uma princesa egípcia. E assim permaneceu, deixando arribado um bumbum imperial semi desnudado…

 

Sim, confrades onanistas, fiquei de queixo completamente caído, encantado pela bunda, claro, mas ainda mais pelo descaramento, pelo atrevimento, pela exposição despudorada dos desejos… E dos sentimentos. Nós não havíamos praticamente conversado até então, período em que ela não fizera qualquer objeção a tudo o que lhe fora proposto, e agora estava ali, deitada em minha cama (minha cama, senhores!!!), com o umbigo a tocar os lençóis e aquela anca insolente, singelamente oferecida, que mirava o firmamento, recoberta por uma delicada calcinha branca de renda. Não havia como ter mais fluidez na constituição de uma síntese do que aquela nossa silenciosa dialética, o que me deixou à vontade e desprovido de tensões, a ponto de compreender como desnecessários os argumentos ensaiados para momentos como aquele – Sabrina os fizera descartáveis, silenciosa e libidinosamente.

 

Olhando para ela, tão absoluta em sua tranquilidade, tão afeita e entregue, senti meu prazer crescer abruptamente. Pelo vão da janela, o brilho azul-prateado da lua fluorescia em suas rendas, aumentando o contraste da peça com a tonalidade morena de sua pele macia, que eu agora acariciava, estimulando-a a exalar o marcante odor que prenuncia o coito.

 

Completamente submetido às ordens que ela me passava apenas pela respiração ofegante, apressei-me em lançar longe toda a roupa, e logo estava deitado a seus pés, percorrendo a suavidade de sua pele com as mãos, e depois com o nariz, até tocá-las com os lábios e a língua, separando uma coxa da outra num leve abrir de pernas, arqueando o bumbum e exibindo, por sob os pêlos escondidos pela calcinha, uma vulva vermelha e cheirosa que latejava, plena, que agora pulsava em minha boca…

 

 ***

No dia seguinte, fui sacado de campo ainda no primeiro tempo: – Não tomou café, Caniggia? – reclamou o Ferrugem, enquanto eu seguia, rastejando em direção ao judiado banco de reservas do Estádio Pelezão.

– Bila, três laranjas pra ele; o menino tá com cara de fome, coitado!

Número 2

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Juliana Silva Gama

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