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Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5
O Félix já não vinha à janela 

Carolina Martins

Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5

O Félix já não vinha à janela. Ninguém comentava e eu não perguntava. Porém, sentia-lhe a
falta. Sabia que o Félix também já não ia à soleira da porta porque espreitava
constantemente da janela do salão da minha avó para a porta da residencial onde ele vivia,
do outro lado do pátio, e não o via.

A casa da avó ficava no primeiro andar de um casarão velho, onde moravam apenas ela e a
Anunciação, no rés-do-chão. Não me lembro da casa da Anunciação, pois via-a sempre à
porta, a varrer ou a lavar o chão. Não me lembro de alguma vez lá ter entrado. Lembro-me da neta, a Joana. E do filho, de quem não sei o nome.

O pátio era enorme (ou assim parecia a uma miúda de cinco anos) com chão de cimento e
muito danificado. Parecia um parque de estacionamento, mas era ali que se estendia a roupa, se jogava ao berlinde e se encontrava o Félix com o seu lencinho.

Lembro-me bem da casa da minha avó. Havia formigas na pia da cozinha. Uma pia de pedra. E eu adorava esmagar as pobres formigas com a ponta do dedo. Lembro-me que havia quem as queimasse com isqueiro ou até quem as comesse. Não me lembro bem nem do frigorífico nem dos armários da cozinha. O quarto, com uma cama de casal baixinha e duas mesas de cabeceira, todas meio plastificadas e a imitar madeira escura, era uma divisão onde passava muito tempo. Talvez porque havia um móvel baixo com uma portinhola em frente à cama onde se guardavam os turcos de bidé e que suportava a pequena AEG branca que sintonizávamos em VHF ou UHF para ver entre o Canal 1 e a RTP 2. A preto e branco, claro.

No salão, dançava e cantava ao som de cassetes que punha no gravador Philips cinzento de que tanto me orgulhavacom uns efeitos geométricos rosa e amarelo fluorescentes. Quando não estava a fazer isto, estava a ler os livros da Anita. O meu favorito era o “Anita no Ballet” porque tinha as imagens das várias posições para podermos imitar. E eu imitava. Também era no salão que fazia ginástica e partia discos atirando-os contra a parede. Não havia mais ninguém e eu não avistava o Félix em lado nenhum. Aborrecia-me.

Às vezes, punha um alguidar com água no meio do salão para me refrescar no Verão. Era o
mesmo alguidar rosa em que me davam banho quando era bébé. O salão dava para estas
brincadeiras porque era enorme e estava praticamente vazio. Tinha duas janelas altas, de onde espreitava para o pátio e para a residencial. E junto a uma dessas janelas, quase encostada à parede branca, havia uma mesa de jantar para seis da mesma imitação de madeira plastificada que a mobília do quarto. As cadeiras estavam estofadas com tecido verde-azeitona. Nessa mesma metade do salão, existia “O” móvel. Do mesmo material que tudo o resto, oposto à janela e a dois palmos da parede, tinha duas prateleiras e uma gaveta por baixo. Era aí que estavam os discos antigos da minha mãe, dos ABBA e outros de que não me lembro e que também devo ter partido contra a parede (ou simplesmente partia-os com as mãos). Existiam ainda, nesse mesmo móvel, alguns dos livros do meu avô que a minha avó não queimou. Eram vermelhos e com uma suástica negra na lombada. Mas eu folheava antes os meus favoritos, de uma colecção da Verbo, um com búfalos e outro com átomos e marcava com esferográfica azul as imagens que mais gostava. Na gaveta, fotografias espalhadas. Uma mãe jovem, um rosto magro e cabelo castanho comprido e liso, vestida com calças à boca-de-sino azul eléctrico e uma camisa de tecido fino com flores em tons castanhos e óculos de sol grandes e também castanhos. Ao seu lado, uma amiga que não consegui reconhecer (e já não me lembro quem me disseram que era). Ficou-me a imagem da minha mãe porque era tão diferente daquela pessoa tão arranjada da fotografia, de cabelo curto, com brincos grandes e brilhantes que eu dizia serem “de senhora” e camisas de seda aos losangos pretos e brancos.

Continuava a não ter notícias do Félix e ele continuava a não aparecer sequer à janela. Só
podia ter acontecido alguma coisa. Não aparecia há vários dias. Não via o Félix há mais de
uma semana e ninguém me dizia o que tinha acontecido. E nem eu perguntava. Mas
precisava de saber. Ou, pelo menos, perceber o que estava a acontecer. Em casa, tudo
decorria como de costume, no pátio a mesma coisa, na residencial igual. Não percebia
porque ninguém o procurava.

Se não fosse tão envergonhada ia perguntar nem que fosse à filha dos donos da residencial, mas parece que tinha enlouquecido por algum motivo que eu não tinha ainda idade para saber. Via-a andar pela rua sozinha. Tinha uma corcunda, provavelmente por fumar muito curvada durante todo o dia rua fora. Cabelo curto, castanho-claro, muito ralo. Era alta e magra como as modelos, mas .muito “estragada”, como ouvia as pessoas dizer. Todos os dias de manhã entrava na loja dos meus pais e pedia amostras de perfume. Não que não tivesse dinheiro, era a cabeça, dizia a minha mãe.. Quem pedia amostras e não tinha dinheiro era o Alexandre para comprar heroína.

A terra era pequena. A rua por onde costumava andar era a do comércio, feita da típica
calçada portuguesa que não dá jeito nenhum nem para os saltos nem para os skates. Nessa altura ainda tinha lojas abertas. Passavam por ali outras pessoas misteriosas para mim. Uma delas era o sobrinho do Sr. Feliz das cautelas. Vestia-se à vagabundo, com a barba por fazer, cigarro ao canto da boca e caderno e caneta em punho (frequentemente acrescenta um livro a este inventário).

Quando se subia a rua do comércio, sensivelmente a meio, havia uma porta escura de uma
casa que não era loja. Era uma porta com pouco mais de metro e meio. O Pedro tinha de se
baixar para passar. O Pedro ia à mesma livraria que eu, mas já era crescido. A minha mãe
contou-me que eu tinha medo dele quando ia à pediatra. O Pedro não era só crescido, o Pedro era grande e negro e eu tinha medo. Tinham-no encontrado em África, ainda criança, porém, a última vez que o encontraram já estava morto, junto ao mar de Paço d’Arcos.

Ia passar o Inverno a brincar sozinha no pátio da minha avó. O Félix foi o meu primeiro
amigo. O Félix do lenço bordeaux a passear a sua elegante figura à porta da residencial, do
outro lado do pátio. Um dia, a minha mãe ofereceu-me uma caneta de tinta permanente e um filofax de um gato famoso, também chamado Félix, e eu soube que o meu amigo tinha
morrido.

[O Félix não era um gato, era um amigo em pessoa que morreu com SIDA (“aquela doença”) em 1989 e, como muitos, rejeitado por uma família que perdeu a oportunidade de o conhecer.]

Edição 5

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