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é só e não é
Fernanda Thayna Silva

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um cigarro depois, resolvi abri-la. não que eu não soubesse o que a caixa guardava e nem que me lembrava de tudo, de todos os detalhes: algumas fotos reveladas, linha e agulha de crochê, um relógio, um par de velas brancas, o último teste de gravidez, uma oração escrita a mão, duas ou três cartas, uma caixa de fósforos por se acabar. fui tirando um a um, tocando as histórias com o cuidado de quem carrega um recém-nascido pela primeira vez.
mais cedo, o dia começara antes mesmo de eu acordar. sonhei o que pareceu a noite inteira, é verdade que a intensidade congela o tempo. e acordei sem saber exatamente com o quê sonhei, mas tomada por aquela sensação do coração tentando se reencaixar ao corpo, como se algo tivesse mudado, como se eu fosse um novo quebra-cabeças de mil peças?
brincava de existir. olhei para os cômodos da casa, os grãos de terra denunciando que não
fomos capazes de tirar os sapatos na porta como prometido; as roupas sujas em cima do sofá; os pelos dos cachorros por todo lado; os lençóis tomados pelos joelhos ralados do tempo; meu coração fora do lugar, sem jeito, buscando se sentar à mesa. dizem que uma casa arrumada é uma casa sem alegria – estéril.
como seriam as mãos de quem fez a caixa, aquela cor encorpada de madeira, cuja tampa, com delicadezas em relevo, desliza fazendo um som que parece aquele das passagens velhas e secretas se abrindo, desses filmes em que os detetives são só pessoas muito curiosas. que ofício bonito esse, construir casas para nossos afetos, ainda que para ficar escondido dos olhos que é para não lembrar demais, mesmo que não precisasse de nada daquilo para não esquecer.
o crochê era tecido pelas mãos da minha mente, os fios entrelaçados.
a última vez que tinha escutado esse deslize, foi para guardar. para guardar o teste com as
duas listras rosas, as duas listras rosas que dizem sim, você está grávida, grávida, e te empurram para o poço fundo das emoções que não sou capaz de nomear. porque quando misturadas em um mesmo pote, perdem os contornos e ganham outra textura nos levando a lugares ainda desconhecidos, alargando quem um dia fomos.
arrumar a casa seria perda de tempo? se ninguém segura o tempo nas mãos, não há mesmo
tempo a perder. é o tempo quem nos tem. e se chegam mesmo a existir, são tempos, tempos: poços, cujas paredes sólidas como nosso próprio corpo nos cercam, e vamo-nos modelando um ao outro no grande labirinto do espaço preenchido por histórias.
mas a casa bagunçada por verões demais me parece um estado constante de caos. E o caos
apenas compõe; em certa medida, quando junto com outro, criam uma espécie de organização.
sem nem tomar café, comecei pelo sofá, cinza encardido, antes só cinza, e antes ainda de um
vermelho terroso.
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diante daquele corpo estirado, coloquei dois dedos embaixo de seu nariz para ver se ainda
respirava. não respirava. me afastei por um instante, paralisada como ele. fiquei a olhar para
aquele rosto enrugado, como só quem teve uma vida dura ao sol por tempo demais poderia
ter, e que agora finalmente descansava, tão claramente descansava, como o próprio sol à noite muda. e nada. encostei levemente meus lábios nos seus. corri, como se pudesse fugir de mim mesma, da realidade estilhaçada. chegando no quarto, onde minha mãe e meu irmão criavam raízes, uma única lágrima rolava pelo meu rosto.
a morte é solitária.
sequei a gota de amostra do mar numa toalha pendurada na porta, sequei o mais rápido que
pude, mas com tanto carinho, aquela única lágrima, meu último olhar, o primeiro beijo.
decidida, não falei nada, eles ainda não sabiam, como poderiam se não tinham ido à sala.
não queria dar notícia tão ruim, não saberia, e quem ali acreditaria em uma criança, em mim?
água para lavar. balde para reunir e descartar. pano, não para passar, mas para desvelar como
cortinas de um teatro que se abrem: uma peça nunca vista. encontrei pregos pequenos e
enferrujados espalhados pelos cantos.
o relógio era do meu pai, esse tempo todo.