Pool Dunkelblau é pseudônimo de Paul Aguilar Sánchez (1985-), escritor e docente-pesquisador que tem publicado diversos livros de ficção, entre eles Mutantografías (2017) e Elle (2018), editados pela independente Tiempo-que-Resta com David Joel, e Judas (2020), pela Secretaria de Cultura da sua cidade natal (Puebla, México), além de uma obra primeira Las sombras (2018), definida pelo autor em certa ocasião como uma “protonovela, o un intento de hacer novela”. El espejo humeante (2022) é resultado da experiência de viver e estudar em Brasília durante os anos de pandemia de covid-19 (concomitantemente à praga do governo de extrema-direita que assolou o país durante o mesmo período), tendo sido publicado pela editora Cierzo, nova iniciativa surgida em Puebla pelas mãos de Gabriela Guevara.
Os textos iniciais de Dunkelblau já passeavam por um âmbito indefinido, mesclando elementos líricos e satíricos numa concepção híbrida do conto e da ficção narrativa. Antes mesmo de sua fase brasiliense, era possível notar o interesse inicial de Pool Dunkelblau/Paul Aguilar Sánchez por uma ficção urbana capaz de transitar entre as fronteiras do discurso ficcional, característica que toma outra configuração no jogo de espelhos aproximando Brasília a Puebla em El espejo humeante.
Sobre espelhos e cópulas
Ao tomar a metáfora do espelho como mote para seu livro Los espejos humeantes, Pool Dunkelblau toma certa distância do espanto borgiano observando-o, paradoxalmente, por dentro. Seu livro tem algo de Alice através do espelho, na medida em que o narrador entra no território do espanto da multiplicação visto desde a ficção, seja aproximando-se do espelho ou da cópula, da vida nela mesma ou da maneira como ela é sentida ou representada.
Lembro-me da vez em que conversando com Pool estivemos falando até chegar ao tema da refração, que sintetiza a maneira como Pool concebe sua forma de compor El espejo humeante. Refratar não é representar ou simplesmente duplicar a linguagem, e nem exatamente refletir como sonham os que querem enquadrar a ficção na sua modalidade estritamente reprodutiva. Por meio da refração, pode-se notar o que é em si um desvio ou a representação de um reflexo alterado, modificado ou, de alguma forma, distorcido. Essa é uma mímesis produtiva, como a que aponta Luiz Costa Lima em sua teoria da ficção (ainda que o autor de Os espejos humeantes inverta essa equação ao mencionar a imitação da realidade em uma das passagens do livro).
A série de 16 fragmentos interconectados de Pool Dunkelblau parte da hipótese de que Brasília e a cidade mexicana de Puebla (de los Ángeles) são espelhos que ao se emparelharem se reconhecem e, em alguma medida, se anulam, ou melhor, se reconfiguram, mesmo que num espaço aparentemente invisível. Essa também é a função que assume o narrador como um “eu” que se desloca e se apaga ao mover-se. Uma literatura feita de movimentos e fugas, sem palavras finais nem definitivas. Um tiro sem direção e um grito ao vento, um sopro de liberdade onde uno las quiera.
Assim como poderia ser Montreal (e é, devido a esta revista eletrônica), Brasília e Puebla são tomados como módulos de um espaço outro intermédio, algo que em El espejo humeante poderia ser notado desde o seu primeiro relato, intitulado “Brasília ficción”. A capital de Dom Bosco transforma-se em contraparte da experiência poblana da vida do narrador, e, no espaço próprio da ficção, as duas cidades vão sendo aproximadas até se transformarem uma em imagem da outra, num processo de múltipla refração que leva à fusão das duas em somente uma através da utopia literária.
O texto de Dunkeblau poderia ser enquadrado naquilo que o escritor e crítico José Sánchez Carbó chama de “relatos integrados”. Apesar de não estarem estruturados como uma narrativa linear, os textos de El espejo humeantes demarcam o quadro da experiência do narrador (que, no livro, aparece às vezes denominado de Platão de Oliveira) a partir da concepção de uma “narrativa vitral”, uma narrativa fractal unindo a capital do Estado mexicano à capital do Brasil (como bem nota J.L Árevalos no seu prólogo destacando a fantasia e a imaginação como elementos fundantes do livro).
Nesse processo de aproximação e refração há perdas e ganhos. Certamente, as Brasílias e as Pueblas que aparecem em El espejo humeante são só duas possibilidades e o narrador tanto é ciente disso que o notifica no texto, quando começa o livro com a frase “Platón sabía perfectamente que la realidad es mejor cuando está contenida en el mundo de las ideas”. Não deixa de chamar a atenção o fato de que o mesmo narrador, ao equiparar descritivamente as duas cidades, não consegue achar o centro de Brasília (cuja Rodoviária não consegue assemelhar a nenhum ponto da capital poblana).
Teoria da refração
Por fim, para resenhar aqui o livro de Dunkeblau, tive que me certificar primeiro de que o Erivelto do qual ele tratava em dois fragmentos do seu livro não era eu mesmo. Isso seria difícil se não soubesse desse duplo ficcional já tratado por Jorge Luis Borges em textos célebres, entre eles aquele fragmento intitulado “Borges y yo”.
Pool sabe bem que, ao entrar no quadro da ficção, toda a realidade assume sem receios o risco de deixar de ser aquilo que ela é, e isso explica a atividade ordenadora exercida pela voz narrativa em seu texto (quem escreve e é retratado é sempre o outro)
Na passagem “La increíble refracción del universo”, alude-se ao fragmento intitulado “Cantilena”, do livro Cínicos e entediados, escrito por mim e publicado em 2018 (com uma referência no título à conhecida ária de Heitor Villa-Lobos). O encontro apaixonado descrito nessa passagem poderia ser ligado ao desencontro amoroso no segundo texto, num jogo intertextual que reitera a montagem feita a partir do par de cidades escolhidas, cidades cuatas ou irmãs (mas não exatamente idênticas), que se refratam no espelho da ficção. Vejo no Platão de Oliveira um primo próximo do Diógenes da Silva do mesmo livro citado neste parágrafo, assim como o Dr. Ninguém aludido no seu “Posfacio” pode ser aproximado ao Dr. Pablo dos Santos aparecido em outro livro de minha autoria, Novesforacopa:velhas crônicas futboleiras (2018).
O nome Platão de Oliveira para um dos personagens centrais do livro sugere também uma aproximação ao mito do eterno retorno. As situações e contos do livro de Pool Dunkeblau referem-se sempre a outros tempos ou textos, vistos como espelhos duplos, que incidem sobre aspectos sombrios ou noturnos à luz do tempo. Esses espelhos podem ser lidos como o reflexo das obsidianas ritualísticas, mas também como a solidão evocada pelas telas dos computadores e celulares. Eles dão vazão a personagens únicos e parecidos de livros, tempos e lugares diversos. No caso específico de Platão de Oliveira e Diógenes da Silva, um filósofo e o outro, cínico, ambos refratam o lugar difuso do espaço crítico da literatura latino-americana, pela voz de narradores que se arvoram a desafiar os cânones estéticos e comerciais do tecnofeudalismo cultural.
O livro de Pool Dunkeblau navega em direção à luz da Lua apenas entrevista pela ficção contemporânea. Nele se mistura, simultaneamente, a cruel saudade que ri com aquela que chora, conforme os dizeres musicados da poeta.
“¡Silencio! Que alguien sueña despierto – me dice el otro, el del espejo” (Los espejos humeantes, Pool Dunkelblau).
“Los espejos y la cópula son abominables, porque multiplican el número de los hombres” (Ficciones, Jorge Luis Borges).
"
Título: El espejo humeante
Autor: Pool Dunkelblau
Editora: Cierzo Editorial, Puebla, México
Ano: 2024
Páginas: 150