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Canibal

Nara Vidal

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3:59 a.m.
O pulso para.
O coração para.
O cérebro desliga.
Um corpo cai.
A morte nasce.


Acabou-se o que era doce

Eu ainda me sinto impressionada com o sonho de ontem  à noite. Sonho vívido. Tudo parece ter acontecido. Uma névoa  espessa engrossa a minha visão. 

E continuo sonhando como se estivesse sempre acordada. Não sei bem o que fazíamos naquele mato gelado e escuro  àquela hora da madrugada. Eu acho que estava com um grupo  de amigos e enquanto caminhávamos, ficou escuro e nos demos  conta de que ninguém levava lanterna. Longe de qualquer casa,  nos valia apenas o vento que ensurdecia se olhássemos reto em  frente. Bem longe notei uma luz pálida e verde piscando dentro  da floresta. Um celular, talvez. Não sei o quão longe estava aque la luz fraca, mas se fosse mesmo um telefone, o que uma pessoa  estaria fazendo dentro da floresta densa? Nós estávamos perdi dos, mas se não, ninguém passaria um minuto dentro daquela  escuridão gélida se não tivesse um motivo como o nosso, que era  o de tentar, mas não achar o caminho de volta.  

Fizemos silêncio para ver a luz verde piscar. Não estava tão  longe quanto imaginávamos. A cada piscada pálida, um rosto  branco se iluminava. Um homem sem cabelos nos viu. Ele acari ciava uma pessoa estendida no chão. A cada piscada da luz verde, entendemos que se tratava de um corpo morto. O homem vivo  segurava um corpo morto. Mais uma piscada de luz e apenas o  corpo estirado em gravetos, folhas secas, chão frio. A luz pisca  mais uma vez e o homem não estava mais perto do cadáver.  

Nervos. Perdemos ele de vista. 

Mais uma piscada. 

Ele se aproximava de nós a uma velocidade descabida. Cor remos. O ar nos faltava. Tropecei. O homem agarrou meu pé. O  meu pé esquerdo chutava seu rosto na tentativa de escapar. Ele  agarrou minhas coxas. Não acho que eu tenha gritado porque  senão teria acordado. Meus amigos também escapavam e me vi  sozinha. Eu também teria escapado. Sempre fica alguém. Pena  que era eu. Urros no escuro gelado na floresta densa. Éramos  só nós três. Eu, o homem vivo e o cadáver. Me debati com ele,  agora sim, frente a frente numa luta travada que eu não comprei.  Senti seu hálito. Agarrei a faca que carregava e enterrei a lâmina  em golpes, vários, uma facada, duas, três, várias. Cada uma com  mais satisfação que a outra. O homem gemeu, parecia morrer  aos poucos.  

Já morreu?  

Nunca se sabe, era preciso terminar o começado. Não é pos sível matar um pouco.  

Agora era pra valer. Fincar aquela faca até fazê-lo parar de  respirar. Jorra o sangue que escorre de uma facada e que é tão  sujo e veloz quanto o sangue do meio das minhas pernas. 

Enquanto eu o mato, sinto o prazer da violência. É como  sexo. Matar é como sexo, fazer sexo. É irreversível. A beira de  um orgasmo coincide com a linha entre matar ou morrer. Seus  olhos se esbugalhando enquanto eu o exterminava deram um  tom melancólico ao ato. Coitado. Morria nas minhas mãos sujas  por ele. O toque da faca com a casca dura da pele me exigiu força  na penetração. Não é fácil esfaquear uma pessoa. A pele endu rece, enrijece, o corpo em alerta, a pele transforma-se em couro. 

É preciso ter força para enterrar fundo e perfurar a pele, o pri meiro órgão. Depois continuar aquele golpe vertical sem qual quer hesitação. Hesitar é o mesmo que morrer. Depois de enter rar fundo a lâmina é hora de fazer o caminho de volta, sempre  

vertical. O retorno da faca à superfície deve ser mais rápido que  o de golpeá-la.  

Então, só o barulho dos líquidos encharcando o chão de  sangue. O barulho da pele sendo golpeada. O barulho da faca  cortando e penetrando a gordura. Depois o silêncio. Sobrou ape nas a minha respiração alta, exausta, satisfeita. Rolei o corpo já  morto para um lado e me libertei dele como se o rejeitasse depois  do excesso.  

Agora eu precisava nos esconder. Éramos três. Eu e dois cadáveres. 

Parece mesmo um sonho. 

Cavei três buracos como esconderijo. Antes, caminhei, saí  de onde estive. Passei o resto da noite cavando nossos buracos.  Os rasos eram dos mortos. O meu era um buraco profundo. 

Não demorou e fui esquecida. Passei a viver com os dois  mortos relativamente frescos dentro das covas que eu fazia en quanto andava mato alto adentro, vento frio nos ouvidos. O ba rulho dos corpos arrastados levando pedras, pedaços de madeira,  rastros.  

Meus cabelos já compridos e cresceu-me também uma bar ba. No ar gelado nas montanhas daqui da fronteira, os cadáveres  se conservam muito bem. Só há água. Não vejo árvores mais,  só mato alto, vento, areia nos olhos. Meus calos me serviam de  alimento. A cada bolha, eu comia a pele. Comi a pele dos meus  dedos, as unhas. Passei a comer os calos. A pele é um órgão que  nos fornece metros de alimento.  

A faca afiada e amolada nas pedras enlodadas que cerca vam o vento do norte, abriu o peito de um dos mortos. Era  uma mulher e era um homem. Da mulher, cortei os mamilos. 

Ainda relativamente macios. O sangue escoou, a pele, a gordura  e o músculo estirados na pedra secando. Quase emborrachado,  cortei em quadradinhos e cozinhei, fogo feito na hora. Os mor tos me manteriam viva enquanto existissem.  

Agora era eu que correria atrás de quem estivesse perdido  como um dia estive. Agarraria pelas coxas um vivo que logo seria  um morto e colecionaria órgãos frescos que me manteriam viva  e livre.  

Toda noite esse pesadelo. Já tentei meditação, calma, com preensão. Toda noite enterro fundo a faca na carne de um ho mem que não me deixa estar sozinha na floresta. Ele quer o meu  corpo. Quer me comer. E toda noite eu tenho que parar esse ho mem que quer me comer sem eu ter dito sim. Vou lá e digo que  não. Ele não escuta. Vou lá e começo a fugir. Ele não me ouve.  Não consigo escapar. Como se ele fosse um urso. Eu me viro  para ele e urro. Você não deve correr. A não ser que queira ser  devorada. Não há fuga possível. O único jeito é o mais perturba dor: olhar pros olhos do urso e gritar mais alto que ele. Urrar e  assim, assustá-lo. Pode não funcionar. Mas a chance de escapar é  maior do que a chance de correr e escapar.  

Então, eu olho nos olhos do homem que não me deixa andar  no mato em paz e começo a matá-lo. Todo dia é isso. Pode ser o  meu chefe, o meu tio, o meu vizinho, o meu marido. É sempre esse homem.

Número 4

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