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Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5
Caminho de santo 

Isadora Grespan

Sarabatana - Revista Independente de Literatura - Edição 5 -Caminho de Santo

O cheiro amadeirado, acre, do sabão da Costa foi entrando pelas narinas e assim fui
recobrando os sentidos, depois de ter ficado numa espécie de transe por não sei quanto
tempo. Estava exausta. Era como se todas as forças tivesssem deixado o meu corpo de uma só vez.


Eu, despejada de mim.


Quando acordei, Mãe Gamo me banhava lentamente, entoando para Iroko, senhor do
tempo, da ancestralidade. Nós duas sentadas no banquinho de madeira, rentes ao chão, a
palha molhada deslizando sobre os meus braços e ombros, o cântico tomando os meus
ouvidos, preenchendo meu corpo todo. Nu.


Eu, derramada em mim.


Pendurada no reboco da parede do banheiro, me aguardava a muda limpa de roupa branca, a calça, a blusa, o ojá. O banheiro abria para a camarinha, onde descansei o tempo que foi preciso, tomei o chá de ervas e comi o mingau morno, feito só na farinha branca, sem sal, sem nada. Ali, no quarto, uma vela em cada canto, uma esteira coberta por folhas, por cima um lençol branco, uma moringa com água de beber e as oferendas.


Foram muitas, as oferendas.


Um pano vermelho virgem - um pano branco virgem – um alguidar pequeno - um alguidar
grande - 9 velas brancas – 9 velas vermelhas - uma dúzia de ovos - milho de canjica - pó
de café - mel – uma folha de bananeira – um coco seco - frutas frescas – um frango vivo e
outras encomendas que eu mesma cuidei de comprar. Menos o frango. Esse ficou a cargo
de Mãe Gamo.

Ela quem confirmara, semanas antes, que aquele sonho estranho, sinistro, era mesmo um
aviso de coisa ruim. Eu bem que imaginei. Um balaio cheio de cobras, no meio da minha
cozinha, boa coisa não havia de ser. E eram muitas, as cobras. Cobra verde, cobra preta,
rajada, jararaca. Emaranhadas, emaranhando-se. “Isso é gente que partiu e não foi, se
encostou em você”, me disse Mãe Gamo na consulta aos búzios. “Precisa ir embora, viu,

minha filha. Os mortos não devem ficar no mundo dos vivos. Não vai ser fácil, despacho
de Egun é custoso. Tem que ter fundamento. Mas tudo vai se aprumar, tenha fé”.
Eu sabia não se tinha fé suficiente, naquele momento não sabia nem mesmo se eu tinha fé.


Mas fui. Embarquei num Gol velho, sujo, apertado, que partiu em direção a Santo Antonio
do Descoberto e virou à esquerda, pegando a estrada de terra. Aquela poeira vermelha
confundindo meus pensamentos. O que eu tô fazendo aqui, no meio do nada? Um bando
de mulheres sozinhas, vestidas de branco, é muito perigoso. Esse golzinho não vai aguentar.


Por que fui dar confianca àquele sonho?

Depois de rodar um tempo, o suficiente para o asfalto desaparecer de nossas vistas,
chegamos não sei onde. Mãe Gamo desceu do carro, riscou o chão, estendeu o pano
vermelho e me postou de pé. Eu e o frango frente a frente. Eu olhava para o frango mas ele
não retribuia o olhar. O frango ali parado, quietinho, parecendo hipnotizado.


Fechei os olhos e fui me deixando levar pelo cheiro de benjoim queimado e pelo calor da
folha de bananeira em brasa.


Senti um ovo escorrendo pelo meu corpo. Dois ovos. Três ovos. Uma dúzia de ovos
escorrendo pelo meu corpo. Senti o pó de café, o coco seco. E a farinha de milho. E o mel.
Escorrendo pelo meu corpo. Senti o som do caxixi. E a voz em iorubá. Escorrendo pelo
meu corpo. De repente, não senti mais nada.

 


Eu, fora de mim.
Despertei com o cheiro amadeirado, acre, do sabão da Costa. Mãe Gamo me banhando
lentamente, entoando para Iroko, onde tudo começa, onde tudo termina.

Edição 5

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