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As vozes 

Raquel Lopes

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Renata, uma jovem psicóloga, vivia de forma diferente.
E, então, as vozes emudeceram.
Início de mais uma semana. Renata estranha-se, a caminho da clínica. O silêncio fá-la
arrepiar-se.
Aos cinco anos, um acidente de viação atirou-a para um coma de dois meses. Ao
acordar, disse ter «muito barulho na cabeça».
Após inúmeras consultas e diagnósticos inconclusivos, a menina teve de aprender a
viver com esse burburinho interno, cuja intensidade era proporcional ao número de
pessoas à volta. A percepção dos pensamentos melhorava com a proximidade das
pessoas. Algo que a deixava atrapalhada. 
Renata isolava-se. Passava horas a ler ou a pesquisar informações sobre o seu problema,
mas nada lhe devolvia respostas. “Porquê eu?”, pensava.
Formou-se em psicologia, na vertente clínica; forma perfeita de dar alguma utilidade à
sua capacidade de leitura dos outros e garantia de eficácia terapêutica.
Tinha dias esgotantes. Os pensamentos surgiam como cavalos assustados; já nem sabia
se eram os seus ou os dos outros. O único antídoto para o caos era o isolamento, que lhe
restituía o equilíbrio ansiado. 
Não ansiava, de todo, saber o que pensavam dela. Contudo, não conseguia evitá-lo, daí
que tentasse ignorar o que escutava. Tarefa difícil.
Arrepiada com o silêncio, em vez de seguir para a clínica, Renata entra no Café Central,
que está à pinha de gente, acotovelando-se para chegar até ao balcão e aos pastéis de
nata, ainda mornos, salpicados de canela e açúcar em pó. Nada! Absolutamente nada.
Apenas silêncio na cabeça de Renata. 
No entanto, sente-se despida, vazia. A alegria que imaginara sentir, quando um dia se
livrasse do tumulto de pensamentos, eclipsou-se.
“Porquê? E porquê agora?”, questiona-se, intrigada.
Sai da pastelaria e senta-se na esplanada. Abana a cabeça numa tentativa de encontrar
respostas. O ar frio da manhã fá-la lacrimejar do olho esquerdo. Ao levar o lenço até
ele, recorda-se de como, na noite anterior, bateu com a cabeça na mesa, ao perseguir o
gato Farrusco. 
“Terá sido da pancada que dei? Será que outra pancada reverte a situação?”
Entusiasmada com esta ideia, levanta-se e acelera o passo até à clínica. Já no gabinete,
atira a mala e casaco para cima do sofá, e bate com a cabeça na parede.
— Ai!
Leva a mão à cabeça. “Sou mesmo parva. Como se isto mudasse alguma coisa!”
Correu à copa, onde encontra duas auxiliares a tomar café.
“Boa! Vejamos o que estas venenosas pensam de mim!”, esfrega as mãos na sua
imaginação.
Mas, nada. Os sorrisos cínicos eram expressivos, mas dos pensamentos nem pitada.
Renata sai da copa, desconsolada. Os passos pesam de desilusão, o corpo deixa-se cair
sobre a cadeira, à secretária.
“E agora, como vou auxiliar os que precisam? Só pode ser castigo.”
Desde este dia, as vozes calaram-se. 
Renata obrigou-se a aceitar a nova condição de vida, embora, volta e meia, andasse às
cabeçadas, na esperança de recuperar o burburinho perdido.

Edição 4

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