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Coração oco 

Natalia dos Santos Lopes

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Coração oco

Se deus existe mesmo, que acabe a luz!

E foi assim, provando deus ao contrário, que ela percebeu que estava sozinha no mundo.

Estava passando as férias de janeiro na casa da madrinha no subúrbio carioca. Todos os dias eram recheados de eventos e atividades para o entretenimento da menina, que morava longe e quase não visitava. Neste dia acordaram às 4 da manhã para ir ao Jardim Zoológico. A essa hora o dia ainda não era tão quente e pensou que poderia ser feliz. Mesmo com poucas horas de descanso e acordando em plena escuridão se sentiu animada em ver os animais. 

Fazia tempo que não ia ao Zoológico, desde que o pai adoeceu. Era ele a sua companhia, quem a levava para ver o macaco Tião, era no colo dele que chorava quando eram recebidos pelo presente-não-tão-presente-assim que ele lançava de dentro da sua jaula. Mesmo assim suas lembranças das idas ao Zoo eram alegres e esperava  hoje sentir essa sensação de estar ali de novo, perto do pai.

A madrinha preparou um café da manhã reforçado, anunciando que o dia seria comprido. Durante o percurso observava os caminhos, os buracos do asfalto formando pequenos lagos, as casas na beira da estrada, as mercearias, lojas de fogos de artifício. Mas o que mais chamava a sua atenção eram aqueles tubos, postes, não sabia bem o que era, aquelas formas cilíndricas, imensas, pintadas de verde. Parecia alguma peça de gigante perdida pelo caminho, não pertencia a paisagem. O pai contara que de dentro dos tubos, de vez em quando, jorrava água, como uma cachoeira de cabeça para baixo, e toda vez que passava por esse caminho ficava atenta para não perder o espetáculo. Amava cachoeiras. Com o passar do tempo, as vezes que passava em frente foram rareando, até que nunca mais voltou. Ficou observando pela janela e mais uma vez a expectativa foi quebrada. Começava a achar que o pai tinha inventado essa história, mas não teve coragem de perguntar para a madrinha. Prosseguiu resignada fingindo acompanhar os cenários pela janela. 

A quantidade de quebra-molas a irritava, não entendia qual era a necessidade desse número tão alto. Seu pai provavelmente sabia. A madrinha tentava puxar assunto, mas em algum momento percebeu que a menina estava distraída e achou melhor não insistir, devia ser mau humor matinal. Uma loja com bóias penduradas do lado de fora dava uma esperança de refresco, tão difícil nessa parte do Rio. Pensou que seria legal se a madrinha tivesse uma piscina e que, se tivesse, nadaria o dia inteiro, assim a madrinha não se esforçaria tanto para preencher seus dias. Ah, deixa a menina, está se divertindo na piscina. Iria competir consigo mesma por quanto tempo conseguia prender a respiração, até que no final das férias bateria todos os seus recordes e essa seria sua única tarefa durante esses dias. Puxar o ar, afundar, afundar, afundar cada vez mais e só sair quando se sentir segura de novo. 

Mais um quebra-molas. Quebra-molas, lombada, algum outro nome que já não se lembra mais, eram as formas para chamar esses pequenos montes de asfalto que a fazem pular no banco. Lembrou da vez que, distraído, o pai não viu o quebra-molas e achou que iam voar, no fim só bateram as cabeças e as bundas dentro do carro. Ele aguenta, já tinha sentido mais do que isso. Aquele carro tinha histórias além dos vômitos e chicletes nos bancos. Teve até coração de passarinho perdido por ali. Nunca teve coragem de contar essa história para o seu pai, com medo do possível castigo. Ainda não decidiu se estava arrependida por isso, não sabia lidar direito com os sentimentos que envolviam essa coisa tão concreta-sem-chance-de-opinião. 

Foi em algum verão, na casa dos tios, quando seu primo, do alto de uma árvore, decidiu matar um passarinho e o preço do seu silêncio era o coração do bicho. Simples assim. Não teve coragem de olhar para o animal morto, mas ao receber o coração nas mãos, alguma coisa mudou dentro dela. Era tão pequeno quanto as suas próprias mãos, não era vermelho como esperava, mas marrom, um marrom-terra-molhada, era liso e rugoso ao mesmo tempo, quente, firme e frágil, um pouco maior que a semente de feijão que germinou no ano passado na escola e não tinha gordura igual ao coração das galinhas. Poderia ser feito de argila. O primo parou o que estava fazendo para observar a cumplicidade da menina segurando o coração. Sentiu-se violada pelo olhar do primo. Era seu tesouro. Guardou rapidamente o coração no bolso, desceu da árvore e foi brincar na terra, como se aquele objeto não valesse nada. Não durou muito, assim que entrou no carro do pai o coração rolou bolso abaixo e ficou eternizado no vão entre os bancos de trás. 

Pensou na parecença daquele coração com o seu, que ainda tinha vida, e que poderia pulsar a qualquer momento na sua mão, como o seu pulsava dentro do peito. Uma bomba contrátil-pulsatória vertendo todo o sangue para fora. Não pensou na possibilidade de o seu coração se tornar parecido com o do passarinho, oco, perdido, esquecido em algum lugar que nem existe mais. Achava que ainda faltava muito para chegar ao Zoológico, mas não queria perguntar para a madrinha. Vivia sempre em faltas agora, deixou muita coisa para trás. Não era mais a mesma, era metade, não podia ser como antes, porque tudo que envolvia a memória de seu pai não existia mais. E perguntar quanto tempo faltava era parte disso. Olhava através do vidro porque não tinha coragem de encarar a madrinha. O peso que sentia era o mais pesado do mundo, como se carregasse o coração oco do pai no bolso. Em silêncio seguiram para o Zoológico.

Edição 4

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Marina Odo, tradução Paola Dourge

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