
Filicídio
Deslandi Torres

O estampido. Aquilo vinha à cabeça dela a toda hora. Pou!, um barulho seco e o cheiro da pólvora nas narinas. O estampido e o cheiro. Toda hora, o tempo todo, até nos sonhos. O filho dando um passo para trás, por instinto, ou será que foi do impacto do tiro no peito. Instinto ou impacto, antes ou depois, era questão de fração de segundo. E como a arma foi parar na sua mão. Era do filho, não dela, como foi parar na sua mão. Perguntas que ela queria responder e não conseguia. Nem para si mesma, muito menos para o delegado, que insistiu o quanto pode e não se convenceu das respostas que recebia. Só se lembrava da cadeira levantada, o filho espumando, dizendo impropérios. O pai aflito, desesperado, tentando conter o filho e gritando, Larga essa arma Clélia, pelo Amor de Deus, e o estampido, pou!. Estampido, cheiro de pólvora, o passo atrás, aquela arma inexplicavelmente na sua mão, a cadeira levantada, o marido, Larga essa arma Clélia, pelo Amor de Deus, o sangue na parede, no chão, e tudo isso vinha à cabeça da Dona Clélia de uma vez só, tudo misturado, numa ordem qualquer, cada hora de um jeito, mas sempre vinha, ela estava enlouquecendo. Nos últimos dias nem mesmo se alimentava. A depressão tomou conta dela. A ponte de safena que tinha implantado há alguns anos parecia agora que ia entrar em colapso. Era necessário interná-la. Seu coração não poderia mesmo agüentar aquilo. Por certo morreria logo. Deus haveria de poupar-lhe de mais sofrimentos além dos que já suportara até então. Haveria de levar sua alma o mais rápido possível. Era o que pensava nos momentos em que sua mente confusa e atribulada, esquecia por uns momentos do estampido e do cheiro de pólvora nas narinas.
Desde que se aposentou, há quatro anos, Dona Clélia cuidava do filho mais novo, porque o vício das drogas tinha chegado a um ponto crítico. O rapaz abandonou a universidade, não trabalhava mais, estava cheio de dívidas para com as irmãs, tios, o próprio pai, amigos e agiotas e cada vez precisava de mais dinheiro. As discussões com o pai eram ferozes e freqüentes. Sempre respeitou a mãe. Quando Dona Clélia intervinha nas discussões dava um jeito de sair de fino, não levava adiante a discussão. Naquele dia foi diferente. O rapaz estava transtornado, completamente fora de si, louco. Dona Clélia estava observando, esperando que a situação se resolvesse, como de outras vezes, mas percebeu que agora pai e filho estavam uma oitava acima do tom habitual. Algo estranho estava acontecendo com o filho. Olhos muito mais vermelhos, parados, vidrados, ele deveria ter ingerido uma dose cavalar. Agredia o pai com palavras de baixo calão. Começou a dar tapas no rosto dele, Onde está o dinheiro, eu sei que você tem o dinheiro, por que não me dá, por que não me deixa ir sossegado, por que o tirou de lá, onde o colocou. Dona Clélia tinha que intervir. Grita com o filho, que não a ouve. Não a ouve mesmo, era como se Dona Clélia não existisse, só havia ali ele e o pai. Ignora tudo o que se passa à volta. Vai até o quarto, revira de novo as gavetas da cômoda, volta à sala tropeçando no sofá, nas cadeiras, arremessa ao chão vasos e cerâmicas que estavam sobre a mesa. Segurou o pai pelo pescoço, parecia que ia enforcá-lo, arremessou-o contra a parede. O pai caído, o rapaz chuta-lhe as pernas. Tenta se levantar com dificuldades, não consegue, Clélia, socorro. Dona Clélia segura o filho pelos ombros, O que é isso, meu filho, pare com isso. O rapaz dá-lhe um safanão, sem dizer palavra, a mãe tenta agarrá-lo, que ele mais parece um leão enlouquecido, outro safanão, a mãe cai em cima do marido, o filho chuta os dois, Dona Clélia levanta-se, agarra o filho pelo pescoço, numa gravata, parece que vai dominá-lo, mas ela tem mais de 60 anos e o rapaz apenas 29, arremessa-a contra a parede, do outro lado da sala. A vista dela escurece, está encostada à parede, para não cair, apoiando-se aparador, tenta recuperar o fôlego, quando consegue firmar a vista vê o filho espumando pelos cantos da boca, vindo em sua direção com a cadeira levantada. Dona Clélia está com a arma na mão, Larga essa arma Clélia, pelo Amor de Deus, Seu Ernesto grita desesperado, aponta-a para o peito do filho e, pou!, disparou o único tiro que deu em toda sua vida. O rapaz deu um passo atrás e caiu com o peito varado, inundando de sangue o tapete da sala. Respingos vermelhos maculavam a parede, do outro lado. Dona Clélia não sabe como a arma veio parar na sua mão. Devia estar ali, ao seu lado, em cima do aparador, só podia. Nem sabia que o filho tinha uma arma.
Os dias que se seguiram foram os mais terríveis para Seu Ernesto, as irmãs, toda a família. Mas ninguém, nem de longe, sofreu o que Dona Clélia sofreu. O estampido, o cheiro de pólvora nas narinas, como aquela arma veio parar na sua mão, por que atirou contra o próprio filho, seu filho, seria melhor se o filho a tivesse matado, ah, seria, ela deveria ter ouvido o marido, ela sempre o ouviu. Agora todos pareciam olhar para ela e dizer, Ela matou o próprio filho, como pode. É verdade que estavam sendo agredidos, mas ela matou, matou o próprio filho, o próprio filho, o próprio filho, pou!, o cheiro de pólvora nas narinas não a deixava esquecer a cena.
Uma vida inteira nesses dias que se seguiram. Dona Clélia não ligava mais nada para tudo o que viveu até aquele dia. Só o último mês tinha importância para ela. Só queria saber por que fez aquilo, como aquela arma foi parar na sua mão. Como teve forças para ligar para a polícia e dizer, Venham aqui, eu matei meu filho, venham me prender. A polícia não acreditou, pediu nome, endereço e o número do telefone, ligaram de volta, perguntaram tudo de novo, só que agora foi Seu Ernesto quem falou com eles, confirmou tudo e vieram levar Dona Clélia para a delegacia.
O depoimento dela foi confuso. Não conseguia explicar nada. Mas não havia dúvidas de que matara o filho e o delegado deixou-a presa e voltou a interrogá-la no dia seguinte, sem muito sucesso. Mas os fatos eram eloquentes. Agiu em legítima defesa. Difícil era ela mesma acreditar nisso.
Não foi ao enterro do filho. Não suportaria os olhares das pessoas, as palavras de consolo, que palavras poderiam consolá-la, mas sempre há aqueles que acham que têm de dizer alguma coisa além de, Meus pêsames.
Deus ouviu as preces de Dona Clélia. Seu coração combalido arrefeceu, seus olhos se fecharam e Seu Ernesto, que há um mês chorou a morte do filho, chorou agora a daquela que durante tantos anos foi sua companheira dedicada e mãe amorosa. Uma mulher como poucas, capaz de se dar, de viver para si e para os outros, especialmente para ele e seus filhos.
As pessoas em volta da cova de Dona Clélia eram parentes e amigos chegados. O ambiente era pesado demais, só suportável por aqueles que estavam ali por laços de parentesco ou forte amizade. Que horror, diziam. A mãe matar o próprio filho não é coisa que se aceite com naturalidade. Sejam quais forem os motivos, as circunstâncias. Quem dá a vida não poderia nunca tirá-la. Aquilo estava além da capacidade de compreensão das pessoas comuns. Quem há de entender o destino das pessoas, se perguntava Seu Ernesto, tentando entender o seu próprio destino, um enorme ponto de interrogação. Como viveria ele o que restava da sua vida, depois dessa tragédia. A casa sem o filho, sem Dona Clélia. Suas filhas perceberam a tristeza nos olhos dele. Mergulhado num profundo silêncio desde o dia da morte do filho, não dizia uma única palavra se não fosse perguntado e, de repente, Seria tão bom se Deus tivesse piedade de mim e me levasse com ela, eu não quero ficar aqui sem minha Clélia.
E todos entenderam que voltariam, muito em breve, àquele mesmo cemitério.