
Blackouts
Nirlei Maria Oliveira

PAISAGEM
COM DOIS CAVALOS
PAISAGEM COM DOIS CAVALOS
Estão lado a lado
naquela praça em frente da igreja
nesse calor de quando o mundo oscila
na linha do horizonte
e o rio quase defronte
uma miragem
Estão lado a lado
sujos de pó, as cabeças tombadas para a frente,
unidos pelo jugo desigual, a carroça apoiada no muro
mas pronta a ser unida aos corpos deles
Estarão feitos assim: velhos amigos,
os corpos encostados mesmo neste calor,
pela aliança muda?
Arreios, cabeçadas, todos os instrumentos
do que parece ser mansa tortura
mais o freio, ou bridão,
parecido com aquele colocado na boca das mulheres
que desobedeciam,
e era isso há muito tempo,
pelo menos quatro séculos,
ou semelhante ao que se usava
nos escravos, cobrindo-lhes a boca
para que não se envenenassem,
porque se recusavam a viver
escravos
e era isso quase agora, no século passado
Mas eles não criam caos nem desacato,
não se revoltam nem tentam o veneno
se o freio agudo lhes fere, pungente,
gengiva, língua, osso
Só se encostam quietos, um ao outro,
cabeças derrubadas para a frente,
à espera do chicote
que chegará depois com a carroça, pronta
para a entrega das coisas
humanas, o comércio
E é esta a mais perfeita
das colonizações
ENTRE
AS DUAS E AS TRÊS
Queria falar do que não tem concerto:
as letras desenhadas compostas
com que confundo o espaço do papel,
a angústia compassada no contar
e a súbita alegria de ser eu
penosamente, às duas da manhã
Queria escrever do que não tem lugar:
a branca, doce e sonolenta estrada
onde espaçadas as palavras crescem,
suavizadas pelo lento sono
que devagar percorre as coisas todas
penosamente, às duas da manhã
Queria dizer do que não tem conserto:
ou seja, eu; ou seja, o papel branco
sombrio agora por já ser demais,
as letras excedentes e sonoras
desmembrando o silêncio e a noite toda
penosamente, às duas da manhã
Só então falarei do que ficou:
compassada alegria desenhada
na angústia de dizer sem me contar,
o papel confundido de impotente
e todavia prontas as palavras.
Quase às três da manhã. Penosamente
ENTARDECER
DAS PALAVRAS
Entardecer das palavras — buscador de mananciais no silêncio!
Um passo e outro passo mais,
um terceiro, cujo rastro
tua sombra não elimina:
a cicatriz do tempo
se dilata
e inunda a terra de sangue — os cães da noite palavreada, os cães
repercutem agora meio a
meio dentro de ti:
festejam a sede mais selvagem, a fome mais selvagem…
Uma lua derradeira te assiste:
lança à matilha
um extenso osso de prata
— nu como o caminho pelo qual vinhas —,
porém isso não te salva :
o raio que suscitaste
se encrespa ainda mais perto,
e em cima dele nada um fruto
que mordeste há anos.
ELOGIO DA DISTÂNCIA
No manancial de teus olhos
vivem as redes dos pescadores do Mar Extravio.
No manancial de teus olhos
o mar mantém sua promessa.
Aqui arremesso de mim,
coração que morou entre os homens,
os vestidos e o brilho de um juramento:
Mais negro no negro, estou mais nu.
Somente discordante sou fiel.
Eu sou tu quando eu sou eu.
No manancial de teus olhos
singro sonho pilhagem.
Uma rede pegou uma rede:
nos separamos abraçados.
No manancial de teus olhos
um enforcado estrangula a corda.